Há muitos anos tinha um negócio que me levava a idas semanais aos CTT, de
onde expedia dezenas de ‘pacotinhos de felicidade’ para jovens casais
apaixonados, que decidiam apimentar a sua vida íntima com artigos
disponibilizados pelo meu website. Entretanto a Amazon, e-Bay e outros
gigantes, mandaram-me esse negócio ao fundo, mas o mundo não acabou, até porque
estou focadíssimo em novas fontes de entusiasmo – e rendimento. Mais ou menos
por volta do dia 21-22 de cada mês, a estação de correios das Olaias –
entretanto encerrada em virtude das reestruturações que a empresa tem sofrido
depois de ser privatizada – acolhia um fluxo de clientes invulgarmente elevado,
a maioria dos quais a procederem ao levantamento dos seus vales de rendimento
mínimo, desemprego, reforma, inserção social e afins.
Sentado num canto, com a minha cadela Rotweiller – cuja presença era autorizada pelo chefe da estação, que conhecia a boa disposição e natureza da bicharoca – eu esperava pacientemente pela minha vez. Na altura ainda não era entretido pelo maravilhoso mundo das redes sociais, como agora, mas afagava o pêlo negro da Anouk, que se deitava tranquilamente no chão e aguardava pela hora de ser atendida pelo Jorge. Este amigo colocava-lhe então rolos de fita de papel de impressora (usados) na boca e todos nos divertíamos a pôr a conversa em dia enquanto as minhas encomendas eram processadas ao som do delírio da Anouk a roer o seu rolinho de cartão.
Sentado num canto, com a minha cadela Rotweiller – cuja presença era autorizada pelo chefe da estação, que conhecia a boa disposição e natureza da bicharoca – eu esperava pacientemente pela minha vez. Na altura ainda não era entretido pelo maravilhoso mundo das redes sociais, como agora, mas afagava o pêlo negro da Anouk, que se deitava tranquilamente no chão e aguardava pela hora de ser atendida pelo Jorge. Este amigo colocava-lhe então rolos de fita de papel de impressora (usados) na boca e todos nos divertíamos a pôr a conversa em dia enquanto as minhas encomendas eram processadas ao som do delírio da Anouk a roer o seu rolinho de cartão.
Nos tais dias 21-22, ocasionalmente entravam grupos grandes, tradicionalmente
vestidos de preto, a falarem consideravelmente mais alto do que o volume médio
dos restantes ocupantes da estação, e, genericamente, a armarem confusões
frequentes com os ditos ocupantes ou funcionári@s. O cenário incluía regularmente
uma septa-ou-octogenária que mal se conseguia mexer e que recebia alguns euros
ao balcão, depois de assinar um formulário com a sua impressão digital. O líder
do grupo recolhia então a dita verba e todos regressavam ao bólide de grande
cilindrada – normalmente alemão – estacionado no local reservado à carrinha dos
CTT.
Se me perguntassem quão agradado ficava com este cenário com que me deparei
mensalmente durante duas décadas, responder-vos-ia que não, não ficava nada
agradado. Aliás, vinha para casa a sibilar impropérios, que provavelmente
roçariam alguns dos disparates que ouvimos saírem da boca de André Ventura.
Mas as minhas semelhanças com o líder do Chega terminam precisamente nesse
ponto e fica já aqui o forte aplauso a Ricardo Quaresma e Catarina Martins que,
esta semana, o meteram no sítio ou, como disse – e bem – o nosso primeiro, lhe
deram um baile.
O problema de André Ventura é que não entende que não são só os cidadãos de
etnia cigana que vão buscar verbas aos CTT sem terem contribuído para as ditas;
há por aí muito empresário engomadinho, ou jovem que atendeu chamadas num
call-center durante o período mínimo legalmente requerido para poder receber
subsídio de desemprego, que também o fazem. Não são só os ciganos que violam as
regras do isolamento social, porque eu passo pelo Jardim Fernando Pessa a
caminho das minhas compras semanais e o espaço, antigamente ocupado por meia
dúzia de donos de cães, agora mais parece Alexanderplatz durante o OktoberFest.
O problema do André Ventura é que culpa as minorias por problemas que são
causados pela maioria.
Ora puxemos pela cabeça, exercício que é sempre melindroso, mas
malogradamente necessário. Quando um empreiteiro prefere meter imigrantes
cabo-verdianos a alombarem com tijolos, porque trabalham mais barato e,
eventualmente, não abrem a boca porque estão ilegais, a culpa desses
empregos estarem nas mãos dos ditos cabo-verdianos é deles, ou do empreiteiro?
Quando o cinema Londres fechou e se transformou numa loja de artigos baratos, a
culpa é dos chineses que a abriram, ou dos que deixaram de lá ir ver o Tom
Cruise, para irem antes aos centros comerciais e atestarem a seguir a mala do
carro com tralha de que não precisam? Quando a Segurança Social se vê à rasca
para pagar rendimentos de inserção social, a culpa é do número vestigial de brasileiros
e peruanos que eventualmente auferem este rendimento, ou dos donos de empresas
que fazem o possível - e impossível - para cortar nas contribuições mensais
para a SS – incluindo mover as sedes para paraísos fiscais, dentro ou fora da
U.E.? Quando as contas de Mário Centeno nos obrigam a apertar o cito com
impostos mais pesados, a culpa será das lojas dos nepaleses e indianos, que
trabalham sem descanso aos sábados, domingos e feriados, ou será dos bailouts
aos bancos, que já somam tantos milhares de milhões, que lhes perdi a conta?
O problema de André Ventura é que culpa as minorias pelo que sugam ao
sistema quando, como deputado que deveria ter exclusividade nas suas funções,
também ele aufere rendimentos de várias outras fontes.
O problema de André Ventura é que arrasta consigo uma vara de néscios
demasiado simples para entenderem que a esmagadora maioria dos problemas que
atribuem a uma fracção minoritária da população, são efectivamente causados por
um fosso de desigualdade social que se alarga cada vez mais.
Não se combate esse fosso apontando dedos a meia dúzia de desgraçados que,
na maioria dos casos, só querem meter comida na boca dos filhos. Combate-se
esse fosso arregaçando as mangas e tratando bem as pessoas.
Aviso: vem lá momento de auto-massagem no ego, mas perceberão – espero - o
motivo da mesma. Nas minhas palestras motivacionais conto a história do
tabuleiro de damas e xadrez magnético que, quando era miúdo, consegui comprar
graças a um engenhoso esquema que envolvia um desconto considerável nas
fotocópias que tirava para os meus colegas de escola, enquanto arrecadava um
lucro modesto, numa solução que revolucionou o conceito de win-win. Diz uma
frase comum em murais especializados nestas coisas, que “The diference
between men and boys is the size of their toys”. E assim é porque, na idade
adulta, o tal negócio de brinquedos marotos permitiu-me comprar alguns potentes
brinquedos, que cobiçava em posters na parede do meu quarto de adolescente. Mas
a minha ‘baleia branca’ Melvilliana, o sedutor e potentíssimo Lamborghini (o
modelo é praticamente irrelevante), é-me inalcançável, por um motivo simples:
porque, como empresário, a única forma dos lucros da empresa serem suficientes
para ir buscar um (em segunda ou oitava mão) é se esses lucros forem suficientes para que
os sete outros colaboradores da empresa também o possam fazer. Na minha empresa
não nos queixamos das minorias que sacam rendimentos da Segurança Social todos
os meses. Na minha empresa pagámos aos tais sete colaboradores os 30% que o
regime de layoff da SS não cobre.
O André Ventura devia pensar mais antes de falar. Se o fizesse, já teria
chegado à conclusão a que as pessoas lúcidas da Alemanha pré-nazi chegaram: os
problemas económicos do país não foram causados pelos judeus, mas sim por uma
recessão que teve início na Bolsa de Valores de Nova Iorque e se repercutiu
pelo mundo inteiro. Porque isso dos bancos se meterem em negócios que não
correm tão bem quanto esperavam não é uma habilidade só dos tempos de
desregulação dos Bush, Dick Cheney e Trump. Isto é uma artimanha que já
enche os bolsos do 1% e nos morde no proverbial rabinho – dos 99% - desde há
muito tempo. A famosa Grande Depressão pavimentou o caminho para um pintorzeco
de bigode ridículo inflamar hordas de mentes simples, que beberam cada palavra
que lhe caía dos beiços esotéricos, culpando as minorias pelo infortúnio que os
assaltava.
Nestes tempos em que um bicho malvado saiu de Wuhan e tomou o mundo de
assalto, os Andrés Venturas desta vida têm um palco fácil, porque todos estamos
sedentos de um alvo a quem apontar o dedo. Mas apontemo-lo ao espelho, porque
este vírus não é produto de um facínora chinês que quer dominar o mundo – pelo
menos assim o espero. Este vírus é produto de todas as vezes em que fomos de
carro para um destino que ficava a vinte minutos de caminhada. Este vírus é
produto daqueles sacos de plástico que envolvem as maçãs que colocámos no
carrinho das compras e, quando chegamos a casa, enfiámos no caixote do lixo, ou
até no saco da reciclagem amarelo. Este vírus é produto daqueles cinco cêntimos
que poupámos em cada produto atestado de óleo de palma, porque comprar a versão
ecológica e que não mata orangotangos é demasiado caro para o nosso
orçamento familiar. Orçamento esse que encaixa sempre o smartphone de mil euros
mais recente, pois claro. Este vírus é produto da nossa necessidade de comer
tanta carne por semana, que criamos porcos, galinhas e vacas em espaços tão
exíguos que, se nos enfiassem num durante quinze minutos, vomitávamos o almoço
perante a expectativa de lá permanecermos um segundo mais que fosse.
A culpa do vírus, meu caro André Ventura, não é dos ciganos, nem dos angolanos,
nem dos brasileiros, nem sequer dos ucranianos, russos, ou chineses. A culpa do
vírus é de todos nós, que andamos a brincar com esta m#rda, como se a natureza
fosse um saco de pancada que tem de aguentar os caprichos de uma espécie que
decidiu tirar mais do que deve de um planeta minúsculo, que se atravessa de um
lado ao outro em menos de um dia com tecnologia ao alcance de todos. A culpa do
vírus é dos engravatados em quem votamos – incluindo o meu caro – que se têm
preocupado mais com reeleições – e encher os bolsos – do que em resolver
problemas efectivos.
Deixemos de apontar o dedo a quem não tem culpa e a assumir que todos
contribuímos para isto.
Deixemos de dar ouvidos a quem se tenta aproveitar da situação para ganhar
palco.
Já chega de Chega.
Vamos mas é ganhar juízo.