sábado, 6 de junho de 2020

Já chega de Chega

Há muitos anos tinha um negócio que me levava a idas semanais aos CTT, de onde expedia dezenas de ‘pacotinhos de felicidade’ para jovens casais apaixonados, que decidiam apimentar a sua vida íntima com artigos disponibilizados pelo meu website. Entretanto a Amazon, e-Bay e outros gigantes, mandaram-me esse negócio ao fundo, mas o mundo não acabou, até porque estou focadíssimo em novas fontes de entusiasmo – e rendimento. Mais ou menos por volta do dia 21-22 de cada mês, a estação de correios das Olaias – entretanto encerrada em virtude das reestruturações que a empresa tem sofrido depois de ser privatizada – acolhia um fluxo de clientes invulgarmente elevado, a maioria dos quais a procederem ao levantamento dos seus vales de rendimento mínimo, desemprego, reforma, inserção social e afins.

Sentado num canto, com a minha cadela Rotweiller – cuja presença era autorizada pelo chefe da estação, que conhecia a boa disposição e natureza da bicharoca – eu esperava pacientemente pela minha vez. Na altura ainda não era entretido pelo maravilhoso mundo das redes sociais, como agora, mas afagava o pêlo negro da Anouk, que se deitava tranquilamente no chão e aguardava pela hora de ser atendida pelo Jorge. Este amigo colocava-lhe então rolos de fita de papel de impressora (usados) na boca e todos nos divertíamos a pôr a conversa em dia enquanto as minhas encomendas eram processadas ao som do delírio da Anouk a roer o seu rolinho de cartão.

Nos tais dias 21-22, ocasionalmente entravam grupos grandes, tradicionalmente vestidos de preto, a falarem consideravelmente mais alto do que o volume médio dos restantes ocupantes da estação, e, genericamente, a armarem confusões frequentes com os ditos ocupantes ou funcionári@s. O cenário incluía regularmente uma septa-ou-octogenária que mal se conseguia mexer e que recebia alguns euros ao balcão, depois de assinar um formulário com a sua impressão digital. O líder do grupo recolhia então a dita verba e todos regressavam ao bólide de grande cilindrada – normalmente alemão – estacionado no local reservado à carrinha dos CTT.

Se me perguntassem quão agradado ficava com este cenário com que me deparei mensalmente durante duas décadas, responder-vos-ia que não, não ficava nada agradado. Aliás, vinha para casa a sibilar impropérios, que provavelmente roçariam alguns dos disparates que ouvimos saírem da boca de André Ventura.

Mas as minhas semelhanças com o líder do Chega terminam precisamente nesse ponto e fica já aqui o forte aplauso a Ricardo Quaresma e Catarina Martins que, esta semana, o meteram no sítio ou, como disse – e bem – o nosso primeiro, lhe deram um baile.
O problema de André Ventura é que não entende que não são só os cidadãos de etnia cigana que vão buscar verbas aos CTT sem terem contribuído para as ditas; há por aí muito empresário engomadinho, ou jovem que atendeu chamadas num call-center durante o período mínimo legalmente requerido para poder receber subsídio de desemprego, que também o fazem. Não são só os ciganos que violam as regras do isolamento social, porque eu passo pelo Jardim Fernando Pessa a caminho das minhas compras semanais e o espaço, antigamente ocupado por meia dúzia de donos de cães, agora mais parece Alexanderplatz durante o OktoberFest.

O problema do André Ventura é que culpa as minorias por problemas que são causados pela maioria.

Ora puxemos pela cabeça, exercício que é sempre melindroso, mas malogradamente necessário. Quando um empreiteiro prefere meter imigrantes cabo-verdianos a alombarem com tijolos, porque trabalham mais barato e, eventualmente, não abrem a boca porque estão ilegais, a culpa desses empregos estarem nas mãos dos ditos cabo-verdianos é deles, ou do empreiteiro? Quando o cinema Londres fechou e se transformou numa loja de artigos baratos, a culpa é dos chineses que a abriram, ou dos que deixaram de lá ir ver o Tom Cruise, para irem antes aos centros comerciais e atestarem a seguir a mala do carro com tralha de que não precisam? Quando a Segurança Social se vê à rasca para pagar rendimentos de inserção social, a culpa é do número vestigial de brasileiros e peruanos que eventualmente auferem este rendimento, ou dos donos de empresas que fazem o possível - e impossível - para cortar nas contribuições mensais para a SS – incluindo mover as sedes para paraísos fiscais, dentro ou fora da U.E.? Quando as contas de Mário Centeno nos obrigam a apertar o cito com impostos mais pesados, a culpa será das lojas dos nepaleses e indianos, que trabalham sem descanso aos sábados, domingos e feriados, ou será dos bailouts aos bancos, que já somam tantos milhares de milhões, que lhes perdi a conta?

O problema de André Ventura é que culpa as minorias pelo que sugam ao sistema quando, como deputado que deveria ter exclusividade nas suas funções, também ele aufere rendimentos de várias outras fontes.

O problema de André Ventura é que arrasta consigo uma vara de néscios demasiado simples para entenderem que a esmagadora maioria dos problemas que atribuem a uma fracção minoritária da população, são efectivamente causados por um fosso de desigualdade social que se alarga cada vez mais.

Não se combate esse fosso apontando dedos a meia dúzia de desgraçados que, na maioria dos casos, só querem meter comida na boca dos filhos. Combate-se esse fosso arregaçando as mangas e tratando bem as pessoas.

Aviso: vem lá momento de auto-massagem no ego, mas perceberão – espero - o motivo da mesma. Nas minhas palestras motivacionais conto a história do tabuleiro de damas e xadrez magnético que, quando era miúdo, consegui comprar graças a um engenhoso esquema que envolvia um desconto considerável nas fotocópias que tirava para os meus colegas de escola, enquanto arrecadava um lucro modesto, numa solução que revolucionou o conceito de win-win. Diz uma frase comum em murais especializados nestas coisas, que “The diference between men and boys is the size of their toys”. E assim é porque, na idade adulta, o tal negócio de brinquedos marotos permitiu-me comprar alguns potentes brinquedos, que cobiçava em posters na parede do meu quarto de adolescente. Mas a minha ‘baleia branca’ Melvilliana, o sedutor e potentíssimo Lamborghini (o modelo é praticamente irrelevante), é-me inalcançável, por um motivo simples: porque, como empresário, a única forma dos lucros da empresa serem suficientes para ir buscar um (em segunda ou oitava mão) é se esses lucros forem suficientes para que os sete outros colaboradores da empresa também o possam fazer. Na minha empresa não nos queixamos das minorias que sacam rendimentos da Segurança Social todos os meses. Na minha empresa pagámos aos tais sete colaboradores os 30% que o regime de layoff da SS não cobre.

O André Ventura devia pensar mais antes de falar. Se o fizesse, já teria chegado à conclusão a que as pessoas lúcidas da Alemanha pré-nazi chegaram: os problemas económicos do país não foram causados pelos judeus, mas sim por uma recessão que teve início na Bolsa de Valores de Nova Iorque e se repercutiu pelo mundo inteiro. Porque isso dos bancos se meterem em negócios que não correm tão bem quanto esperavam não é uma habilidade só dos tempos de desregulação dos Bush, Dick Cheney e Trump. Isto é uma artimanha que já enche os bolsos do 1% e nos morde no proverbial rabinho – dos 99% - desde há muito tempo. A famosa Grande Depressão pavimentou o caminho para um pintorzeco de bigode ridículo inflamar hordas de mentes simples, que beberam cada palavra que lhe caía dos beiços esotéricos, culpando as minorias pelo infortúnio que os assaltava.

Nestes tempos em que um bicho malvado saiu de Wuhan e tomou o mundo de assalto, os Andrés Venturas desta vida têm um palco fácil, porque todos estamos sedentos de um alvo a quem apontar o dedo. Mas apontemo-lo ao espelho, porque este vírus não é produto de um facínora chinês que quer dominar o mundo – pelo menos assim o espero. Este vírus é produto de todas as vezes em que fomos de carro para um destino que ficava a vinte minutos de caminhada. Este vírus é produto daqueles sacos de plástico que envolvem as maçãs que colocámos no carrinho das compras e, quando chegamos a casa, enfiámos no caixote do lixo, ou até no saco da reciclagem amarelo. Este vírus é produto daqueles cinco cêntimos que poupámos em cada produto atestado de óleo de palma, porque comprar a versão ecológica e que não mata orangotangos é demasiado caro para o nosso orçamento familiar. Orçamento esse que encaixa sempre o smartphone de mil euros mais recente, pois claro. Este vírus é produto da nossa necessidade de comer tanta carne por semana, que criamos porcos, galinhas e vacas em espaços tão exíguos que, se nos enfiassem num durante quinze minutos, vomitávamos o almoço perante a expectativa de lá permanecermos um segundo mais que fosse.

A culpa do vírus, meu caro André Ventura, não é dos ciganos, nem dos angolanos, nem dos brasileiros, nem sequer dos ucranianos, russos, ou chineses. A culpa do vírus é de todos nós, que andamos a brincar com esta m#rda, como se a natureza fosse um saco de pancada que tem de aguentar os caprichos de uma espécie que decidiu tirar mais do que deve de um planeta minúsculo, que se atravessa de um lado ao outro em menos de um dia com tecnologia ao alcance de todos. A culpa do vírus é dos engravatados em quem votamos – incluindo o meu caro – que se têm preocupado mais com reeleições – e encher os bolsos – do que em resolver problemas efectivos.

Deixemos de apontar o dedo a quem não tem culpa e a assumir que todos contribuímos para isto.

Deixemos de dar ouvidos a quem se tenta aproveitar da situação para ganhar palco.

Já chega de Chega.

Vamos mas é ganhar juízo.

#staysafe

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

As pessoas que defendem as touradas são estúpidas - e consigo prová-lo

Cenário: numa sala mal iluminada, um interrogador (Int.) faz um teste a um aficionado (Af.), qual Blade Runner que tenta identificar replicants.

Objectivo: provar que uma alma que defende a continuidade das touradas é estúpida.

Teste #1

Int: Tem cão, ou gato?
Af: Sim.
Int: E gostaria de o ver a ser esfaqueado por um gajo que usa collants cor-de-rosa e sabrinas, para venda de bilhetes?
Af: Não, que horror!
Int: Mas gosta de touradas, certo?
Af: Sim, gosto...

Teste terminado.
Veredicto: o aficionado é estúpido

Teste #2

Int: Tem cão?
Af.: Não.
Int: Mas consegue imaginar, por exemplo, um urso a levar com ferros no lombo, espetados por um gajo que usa lantejoulas?
Af: Sim, consigo.
Int: E que acha dessa imagem?
Af: É obviamente horrível! Grotesca! 
Int: Acha que isso devia ser tornado espectáculo, para as pessoas verem a troco de um bilhete?
Af: Obviamente que não! Isso devia ser proibido!
Int: Na realidade já é, porque há legislação para impedir os maus tratos aos animais. 
Af: Ah, óptimo. Acho muito bem. Eu gosto muito de animais, sabe?
Int: Mas, se este cenário que descrevi for com um touro-bravo, já não tem problema, certo?
Af: Mmmmm... Pois... Nesse caso, não faz mal... 

Teste terminado.
Veredicto: o aficionado é estúpido e ainda balbucia "Mas sabe... É uma tradição com muitos anos... Faz parte da nossa identidade cultural... E perder-se-ão muitos empregos se as touradas acabarem... E desaparecem os touros-bravos..."

Desafio: apliquem este teste às pessoas que defendem as touradas. Podem ser criativos e substituir "cão", "gato", ou "urso" por outras espécies aninais, desde o rinoceronte ao dragão do Komodo. O meu palpite é que o resultado será sempre idêntico, o que valida a minha teoria, segundo a qual as pessoas que defendem as touradas são estúpidas

De nada.

PS - Para mais descontrução dos clássicos - e patéticos - argumentos pró-tourada clique aqui e aqui.